O escritor argentino Jorge Luís Borges, entusiasta das boas frases, dizia em seguida a proferir uma delas um comentário de que além de bonita a frase poderia ser verdadeira. O mestre argentino estava, obviamente, se referindo ao fato de que beleza e verdade não andam obrigatoriamente juntas. A frase acima, que dá título a este artigo, por exemplo, é bonita, mas não é verdadeira (assim o entendo). Os sonhos envelhecem; morrem; são esquecidos; renascem... enfim, tudo é possível nas dobras e desdobras do tempo. Esta frase, na verdade, é parte de uma das mais belas letras de MPB que eu conheço: “Clube da Esquina II” de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges, este último autor da letra (porque se chamava homem / também se chamavan sonhos / e sonhos não envelhecem).
Acontece que também esta bela frase dá nome a um importante livro que Márcio escreveu contando as histórias daquele tempo. É um relato lítero-político-estético-existencial daqueles tempos de angústias e descobertas para os jovens fundadores do Clube da Esquina. O livro, escrito em primeira pessoa traz as marcas de quem viveu com toda intensidade possível aquilo que depois veio a assombrar o mundo musical brasileiro e mundial. Digo assombrar porque há diversos relatos de artistas contemporâneos deles que afirmam certa dificuldade de compreender o que era aquilo. As harmonias, as levadas, os timbres, as letras, tudo era diferente do que se fazia. Não era bossa nova, não era tropicalismo, não era música de protesto, mas era um pouco de tudo isso, porém numa perspectiva absolutamente pessoal daquele grupo de mineiros. É como se eles viessem por fora, bordando o circuito musical brasileiro, mas sem adentrá-lo totalmente, mas mantendo com ele intenso debate.
Fica evidente no texto de Márcio, como de resto parece evidente a todos que de alguma forma acompanharam esta cena, que a figura central de todo esse movimento era Milton Nascimento. De longe isso é sabido, mas o texto de Márcio nos revela como foi se construindo tanto em Milton como nos outros participantes do movimento – se é que o podemos chamar assim – a consciência de que caberia a ele, Milton, elaborar a síntese de tudo aquilo que estava sendo feito. Não foram raros os momentos de hesitação e descrença, mas a percepção de que estavam fazendo a coisa certa era, por outro lado, também muito forte. Bituca, apelido carinhoso de Milton, era como um estuário a receber águas de vários rios e a misturá-las, ao mesmo tempo em que se conectava ao grande mar da música internacional.
Mas tudo isso era coisa de amigos, de turma de quase adolescentes, sem ainda uma percepção clara de que aquilo os levaria a uma profissionalização, e no caso mais específico do Milton, a uma carreira internacional. O relato de Márcio Borges nos mostra com muita densidade humana, que fazer música era pra aquela rapaziada uma necessidade vital dentro daquele contexto de guerra e opressão que eles viviam. Não era fácil... (em meios a tantos gases lacrimogêneos / ficam calmos, calmos, calmos). Em alguns momentos o cenário pintado pelo autor é de guerra mesmo. Mas há momentos de batida de limão, namoros, frustrações e alegrias.
Entre tantas e tantas histórias há uma que contarei aqui: Milton, Márcio, Lô, Duca (então mulher do Márcio), Brant e um colega seu chamado Ildebrando encontraram por acaso o Ex-presidente Juscelino Kubitschek em Diamantina. Justamente este último, Ildebrando, não se conteve diante daquele personagem quase mítico e com toda sem cerimônia do mundo lhe diz: “ô Nonô! Que prazer, Nonô, dê cá um abraço meu velho”. Vejam se isso são modos de tratar um ex-presidente, e ainda mais da estatura de JK. Mas o presidente não se ofendeu, e o encontro acabou com Milton e a turma cantando para ele a canção “beco do mota”. O presidente riu, sabendo que o "beco", ao qual a canção se referia, era aquele lugar de "recreação" masculina, em frente à arquidiocese da cidade (a canção termina com o verso “o Brasil é o beco do Mota).
Delícias de histórias vão correndo pela pena do Márcio sem que possamos nos dar conta da passagem do tempo. O relato é vertiginoso e tem a pressa e a angústia daqueles tempos. Mas acima de tudo, o mistério Minas continua, o mistério Milton permanece a nos desafiar. A desafiar novos corações e mentes que se debrucem sobre ele. Ver tudo aquilo que aconteceu pelos olhos e pelo texto de Márcio Borges é uma experiência que vale a pena. É coisa para rir e chorar, mas acima de tudo para se orgulhar da síntese estético-musical engendrada por aquela turma das Geraes.