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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

CHICO MÁRIO: UM ARTISTA BRASILEIRO

   Por Ricardo Moreno


   Há anos atrás, uma amiga ao me ver tocando violão me perguntou se eu conhecia Francisco Mário, ou Chico Mário, como também era muito conhecido. Respondi um tanto desatento que não, não conhecia! Na verdade sequer ouvira falar dele. Ao ouvir esta resposta que denunciava minha ignorância musical, minha amiga passou a quase todo encontro repetir a pergunta: “Você já ouviu Chico Mário?” Eu continuava dizendo que não, o que a deixava num misto de incrédula e irritada. As coisas continuaram assim até o dia em que ela resolveu acabar com a minha ignorância em torno da obra do Chico. Chegou pra mim com um Lp debaixo do braço e disse: "tome! Você agora vai conhecer o Chico Mário". Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi botar o Lp pra girar. Aí entendi todo aquele empenho da amiga para que eu o conhecesse. O disco é maravilhoso!
   Em seguida passei a procurar outros discos dele e descobri que este que eu tinha ouvido, era o último de sua produção, e tinha sido lançado postumamente, em 1988. Este disco foi concebido e gravado com Chico já consciente de ser portador do vírus HIV. Assim como seus irmãos, Henfil e Betinho, Chico Mário era hemofílico, e contraiu a doença num processo de transfusão de sangue. Foi, sem dúvida, uma das perdas terríveis daquele primeiro momento de expansão da AIDS. Chico era mineiro de Belo Horizonte e ao todo ele gravou sete discos de carreira e mais um com o líder camponês pernambucano Francisco Julião, um dos grandes líderes das famosas ligas camponesas em Pernambuco nas décadas de 1950 e 1960. Essa parceria evidencia uma tendência militante do compositor, que durante toda sua vida esteve ao lado das boas causas do seu tempo: lutou contra a ditadura militar (foi membro da Juventude Estudantil Católica) e atuou como vice-presidente da Associação dos Produtores de Discos Independentes.
   Seus discos são heterogêneos no sentido de que se alternam entre discos de canções e discos instrumentais. Mas em ambos os campos Chico deu provas de sua excelência. O seu primeiro disco, “Terra”, um disco de canções, foi bastante elogiado pela crítica, bem como por um conterrâneo seu de muita importância no cenário cultural brasileiro: Carlos Drummond de Andrade. Esse disco conta com a participação de uma turma de craques da música. Lá estão: Joyce, Quarteto em Cy, Antonio Adolfo, Danilo Caymmi, Luli e Lucinda e mais um pessoal de primeira.
   Em seguida vieram outros discos dentre os quais eu destacaria o “Conversa de cordas, couros, palhetas e metais” de 1983. É um verdadeiro primor! Timbres maravilhosos, temas lindos e arranjos graciosos. Esse disco recebeu o prêmio de melhor disco instrumental do ano fazendo seu autor ganhar o troféu Chiquinha Gonzaga. Toadas, baiões e choros e outros gêneros marcam presença. O disco demonstra um controle sobre a obra que só a maturidade pode trazer. Chico tinha consciência disso. Logo a seguir veio o LP “Pijama de seda” feito em homenagem ao mestre Pixinguinha. O tema que abre o disco, “Ressurreição” é dedicado ao seu irmão Henfil, e é simplesmente uma melodia inspiradíssima, com intervalos melódicos que tecnicamente diríamos de quinta ascendente que nos dá a sensação de uma ressureição.

   No disco “revolta dos palhaços”, o temperamento irrequieto do Chico o levou a fazer uma empreitada inusitada. Ele propôs que duzentas pessoas amigas adquirissem o disco antes mesmo de ser lançado, como numa espécie de cooperativa entre consumidores e produtores. Deu certo! E o disco teve a participação dos poetas Aldir Blanc e Paulo Emílio, do ator Gianfrancesco Guarnieri, dos músicos Mauro Senise, Luiz Cláudio Ramos (atual arranjador e violonista de Chico Buarque), e dos cantores Ivan Lins e Lucinha Lins. A capa era do seu irmão Henfil.
Pois bem, faço com vocês o que minha amiga fez comigo: Vocês conhecem Chico Mário? Não? Então corram a procura dos seus discos (creio que todos estejam disponíveis em cd). Comprar não será fácil, mas graças à internet é possível encontrá-los em sites e blogs do pessoal que pesquisa e garimpa. Comecem bem o ano com a música de um grande brasileiro.

domingo, 5 de dezembro de 2010

PONTOS DE CULTURA: UMA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

Por Ricardo Moreno
 
Artigo publicado originalmente no jornal "Pôr-do-sol".

No momento em que vai terminando os oito anos do governo do presidente Lula, é chegada a hora de fazer uma pequena reflexão sobre o que foi feito na área a qual nos dedicamos aqui em nossa coluna: música. Não tenho dados para uma análise de grande envergadura, mas em particular gostaria de tratar de um assunto que considero da maior importância para a cultura brasileira, qual seja, a relação entre a cultura popular e as políticas públicas no Brasil.
Costumo, em linhas muito gerais, distinguir três grandes momentos de aproximação do governo brasileiro com as culturas populares. Primeiro foi no final década de 1940, quando na II Semana Nacional de Folclore o grande pesquisador e intelectual brasileiro Renato Almeida, diz que “proteger o folclore não é tarefa de estudiosos (como até então) nem de alguns homens de boa vontade, é obra do Estado”. A fala de Almeida dá ênfase à proteção das “artes populares”, ao “folclore brasileiro” etc. e não ao sujeito concreto que é detentor desse saber. Claro que este homem, muitas vezes em situação de risco social, poderia tirar proveito dessa “proteção”, mas não era ele o objeto da iniciativa, e sim o patrimônio simbólico.
O segundo momento eu defino como tendo sido entre as décadas de 1970 e 1980 quando em associação com a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a FUNARTE – instituição ligada ao Ministério da Cultura – realiza uma espécie de inventário da música folclórica brasileira e faz diversas gravações de manifestações musicais folclóricas de várias partes do Brasil. Essas gravações foram publicadas na forma de discos de vinil no formato de compactos (eram discos de vinil de duração aproximada de doze minutos). Ainda que precárias, essas gravações representam até hoje uma boa fonte de pesquisa para os interessados no assunto. Mas do ponto de vista de políticas públicas, mais uma vez vimos os esforços do Estado brasileiro (cheio de “boas intenções”) em atuar no sentido de preservar, ou resgatar, como é muito comum que se diga, a manifestação musical popular, mas sem dar a mesma atenção ao homem de carne e osso que é detentor desses saberes.
Chegamos então ao terceiro momento: O Ministério da Cultura, primeiramente com Gilberto Gil e posteriormente com Juca Ferreira, desenvolveu um projeto chamado Pontos de Cultura. Esse projeto coloca pela primeira vez a perspectiva de atuar na valorização do patrimônio simbólico, ao mesmo tempo em que valoriza também o homem que dá corpo e vida ao patrimônio imaterial. Este projeto, entre outras coisas, articula cultura popular e economia solidária de modo a fazer com que os praticantes e detentores desses saberes populares se capacitem para atuar como profissionais, extraindo dividendos materiais de seus saberes imateriais. Dessa forma, as praticas culturais populares são revalorizadas fazendo com que os mais jovens passem a se interessar por aquela dança, música ou técnica de construção de instrumentos, por exemplo, mas sempre na perspectiva inevitável de dar novos significados a estes fazeres.
Hoje já são mais de dois mil pontos espalhados pelo Brasil. Eles são encontrados tanto nas periferias das grandes cidades, quanto em pequenos municípios. Além de articular cultura e cidadania o projeto gera visibilidade para práticas e saberes musicais que estiveram durante muito tempo relegados a uma condição de cultura inferior. Isso quer dizer que tanto a “alta cultura” como a “cultura popular” são reconhecidas e financiadas pelo Estado brasileiro. Cada ponto de cultura pode receber apoio financeiro de até R$ 185.000,00 para ser utilizado conforme o projeto apresentado. A articulação de cultura e cidadania gera importantes ganhos simbólicos e materiais para as comunidades detentoras dos saberes tradicionais. Isso é muito importante e gera inclusão e cidadania, pois muitas dessas comunidades estão em situação de risco social.       
Para o economista Paul Singer, há muita cultura na economia solidária, e muita economia solidária na cultura. É preciso, no entanto, juntar essas duas pontas. Não há dúvida que um novo Brasil está surgindo a partir da idealização dos "pontos de cultura", e que esse novo Brasil se apresentará ao mundo como síntese das possibilidades humanas ilimitadas baseadas na generosidade e na solidariedade. Somos, como diria Darcy Ribeiro, uma “nova Roma”, ainda melhor, pois lavada a sangue negro e índio.
Muito temos que caminhar para que de fato essa terra se torne uma “mãe gentil” e para que este belo sonho se efetive, mas acho que já começamos o caminho. Viva Gilberto Gil e esta bela revolução dos tambores! Viva o Brasil!
Um feliz natal a todos e um ano novo com muita disposição para as lutas que hão de vir.